Flávia Naves
“Ela ainda deixou 20 reais para
trás. Disse que no trabalho como professora não ganhava isso então, não era
justo receber esse valor como cozinheira.” Contou-me essa história, entre
espantada e descrente, a dona da pousada que economizara, por absoluta
resistência da trabalhadora, 20 reais.
Já fazia alguns meses que a
pousada estava sem cozinheira até que a professora dessa história apareceu. Explicou
que, como trabalhava em uma escola com alunos do ensino médio poderia trabalhar
na pousada apenas nos feriados e finais de semana. Fecharam acordo. A dona da
pousada ficou satisfeita com o trabalho: “melhor cozinheira que eu!”,
confidenciou.
Essa situação é provavelmente
muito comum nos dias atuais. Infelizmente, uma professora buscar outra
atividade para complementar renda é algo comum para professores de diferentes
níveis de ensino. Entretanto, essa naturalização não é suficiente para diminuir
meu incômodo sobre esse fato que revela muito sobre as relações de trabalho no
Brasil.
Vejamos. A professora não ganha o
suficiente para sobreviver. A professora revelou-se uma excelente cozinheira,
trabalho que foi muito valorizado e pelo qual ela poderia ganhar mais. Mas então por que a professora não aceitou o
pagamento considerado justo pela dona da pousada? Por que a professora não
permitiu que a cozinheira ganhasse mais do que a professora, mesmo sendo papeis
de uma mesma pessoa? Na impossibilidade de ouvir o relato de nossa protagonista
(que, aliás, não conheço), arrisco-me a interpretar suas razões.
Talvez a professora estivesse defendendo
o sonho de uma profissão, de uma carreira na qual ela deve ter investido muito
tempo, recursos, esforços e sobre a qual construiu expectativas, relações, uma posição
social. Ganhar mais em uma atividade
considerada “menor” em relação a sua profissão é desqualificar-se e
desconstruir toda uma visão de mundo, uma trajetória, planos para o futuro. Mas,
para manter sua profissão é preciso defendê-la buscando complementação de
renda, impedindo que outras atividades (principalmente aquelas consideradas
inferiores) recebam remuneração maior. Ainda que o dinheiro vá para suas próprias
mãos.
Essa história revela uma
hierarquização de profissões e atividades que faz parte do senso comum e que
implica em preconceito e discriminação contra determinadas categorias
profissionais (que se somam a outras tantas desigualdades). Isso é usado para justificar
que, mesmo com a demanda crescente por profissionais, uma cozinheira não pode
ganhar mais do que uma professora. Ou melhor, para justificar que uma
cozinheira deve submeter-se a remuneração menor do que uma professora, mesmo
que essa última não ganhe o suficiente para sobreviver. Pronto. Temos
trabalhadores lutando contra trabalhadores.
Talvez o gesto da professora seja
uma tentativa de legitimação de sua posição em oposição a crescente
desvalorização da educação em nossa sociedade. Professores trabalham muito, em
jornadas intensas (frequentemente em mais de uma escola), em ambientes precários,
investem em qualificação sem retornos compatíveis e precisam lidar, dentro das
salas de aula, com dramas familiares e pessoais, problemas sociais de grande
magnitude para terem a possibilidade de executar seu trabalho.
Então, quando se percebe a tristeza
e a luta envolvida nessa profissão, apela-se para a ficção repetindo que diante
de tantas adversidades o professor é um herói. Um estereótipo que não ajuda,
não convence e ainda pode alimentar outros dramas. Considerando-se heróis,
professores resistem a toda precarização de trabalho que lhe é imposta e ainda
alimentam uma suposta superioridade em relação a outras categorias
profissionais. Ilusões. Professores não são heróis. São humanos e
profissionais.
Se nossa protagonista
professora-cozinheira tivesse aceitado o pagamento completo pelo trabalho que
executou, talvez tivesse rompido com a aura de heroísmo que envolve sua
profissão de professora. Ela se preservou. Evitou, ainda que provisoriamente,
rever suas ideias, suas expectativas e seus planos.
Como sociedade, alimentamos por
vezes a mesma ficção e contribuímos para a desvalorização do trabalho digno do
professor, da cozinheira, do médico, da empregada doméstica e de tantos outros
profissionais. Cobrimos com um envernizado discurso sobre valorização da
educação e igualdade social as contradições que povoam nosso cotidiano, as
lutas pessoais que ocupam o lugar dos debates e mudanças sociais nos esquecendo
de que não há heróis para nos salvar.